O melhor é assumir: a estória do "África" que eu pretendo contar toda vai ter muitos parêntesis. Não é fácil resistir-lhes. A verdade é que todos os esforços que tenho feito para esquecer o "África" e tudo o resto foram em vão e, de repente, a propósito de uma conversa na Rádio, começa tudo a ser muito claro na minha cabeça.
Têm aparecido muitos escritos sobre acontecimentos de que fui protagonista, uma vezes, observador privilegiado, outras, e a poucos reconheço veracidade. São relatos de relatos e, por isso, não correspondem ao que realmente aconteceu. Sempre os tenho ignorado. Um desenraizado não pode andar sempre a olhar para as raízes fora da terra, como soldado na guerra de tripas na mão à procura de uma equipa médica...
Mas, agora que as raízes estão a tomar conta do espaço, ouçamo-las. Vamos aos parêntesis. Espero ter a compreensão dos que me vão lendo.
Vamos ao mais recente desta narrativa, já que gostava de evitar um relato cronológico.
Guiné Bissau - 1977/78
Reinava a paz por todo o território, viajava-se normalmente, com um ou outro controlo, mas nada que se comparasse ao que, na mesma altura, acontecia em Angola. A capital era uma cidade arrumada e limpa, mas nas lojas havia pouca coisa para comprar. Só nos Armazéns do Povo, uma organização que vinha do tempo da guerrilha.
E aqui, nesta ausência de comércio, está o primeiro grande erro político do PAIGC. A nacionalização do pequeno comércio foi uma medida que contrariou a estrutura social de toda a região, históricamente conhecida por zona de entrada e saída de mercadorias. Foi, de resto, a partir dali que os europeus penetraram para o interior.
Destruído o pequeno comércio, a população da Guiné Bissau passou a vender ou para o Senegal, ou para a Guiné Conackry, o que produzia. É interessante verificar, por exemplo, que à redução da produção de arroz verificada no Norte do país, nos anos a seguir à independência, correspondeu uma subida da produção no Senegal. Os números justapoêm-se.
O Estado passou a ser o grande patrão e o respectivo aparelho foi sendo tomado de assalto pela pequena burguesia, que, não tendo estado na luta, assumia a independência como uma oportunidade.
Nos primeiros anos, a unidade criada na guerra, as solidariedades aí desenvolvidas foram sendo substituídas pelas teias de interesses em torno do Estado, que, entretanto, recebia a maior ajuda externa alguma vez dada a um país chegado à independência depois de uma guerra de libertação.
O PAIGC tinha um enorme prestígio internacional que se transformou numa espécie de galinha de ovos de ouro.
A aparente facilidade com que o país instalou uma linha de montagem de automóveis - os Mehari - apresentado publicamente como o "orgulho dos combatentes da liberdade da pátria", a designação que se dava aos homens e mulheres que tinham participado na guerrilha, foi contribuindo para a criação de um clima de pura ilusão. Ilusão ampliada com a notícia da edificação de grandes projectos de fábricas para o aproveitamento do cajú e outras; aproveitamento dos fosfatos, empresas mistas de pescas, etc.
Têm aparecido muitos escritos sobre acontecimentos de que fui protagonista, uma vezes, observador privilegiado, outras, e a poucos reconheço veracidade. São relatos de relatos e, por isso, não correspondem ao que realmente aconteceu. Sempre os tenho ignorado. Um desenraizado não pode andar sempre a olhar para as raízes fora da terra, como soldado na guerra de tripas na mão à procura de uma equipa médica...
Mas, agora que as raízes estão a tomar conta do espaço, ouçamo-las. Vamos aos parêntesis. Espero ter a compreensão dos que me vão lendo.
Vamos ao mais recente desta narrativa, já que gostava de evitar um relato cronológico.
Guiné Bissau - 1977/78
Reinava a paz por todo o território, viajava-se normalmente, com um ou outro controlo, mas nada que se comparasse ao que, na mesma altura, acontecia em Angola. A capital era uma cidade arrumada e limpa, mas nas lojas havia pouca coisa para comprar. Só nos Armazéns do Povo, uma organização que vinha do tempo da guerrilha.
E aqui, nesta ausência de comércio, está o primeiro grande erro político do PAIGC. A nacionalização do pequeno comércio foi uma medida que contrariou a estrutura social de toda a região, históricamente conhecida por zona de entrada e saída de mercadorias. Foi, de resto, a partir dali que os europeus penetraram para o interior.
Destruído o pequeno comércio, a população da Guiné Bissau passou a vender ou para o Senegal, ou para a Guiné Conackry, o que produzia. É interessante verificar, por exemplo, que à redução da produção de arroz verificada no Norte do país, nos anos a seguir à independência, correspondeu uma subida da produção no Senegal. Os números justapoêm-se.
O Estado passou a ser o grande patrão e o respectivo aparelho foi sendo tomado de assalto pela pequena burguesia, que, não tendo estado na luta, assumia a independência como uma oportunidade.
Nos primeiros anos, a unidade criada na guerra, as solidariedades aí desenvolvidas foram sendo substituídas pelas teias de interesses em torno do Estado, que, entretanto, recebia a maior ajuda externa alguma vez dada a um país chegado à independência depois de uma guerra de libertação.
O PAIGC tinha um enorme prestígio internacional que se transformou numa espécie de galinha de ovos de ouro.
A aparente facilidade com que o país instalou uma linha de montagem de automóveis - os Mehari - apresentado publicamente como o "orgulho dos combatentes da liberdade da pátria", a designação que se dava aos homens e mulheres que tinham participado na guerrilha, foi contribuindo para a criação de um clima de pura ilusão. Ilusão ampliada com a notícia da edificação de grandes projectos de fábricas para o aproveitamento do cajú e outras; aproveitamento dos fosfatos, empresas mistas de pescas, etc.
Uns não passaram de notícias e outros foram ruindo sob o peso da imcompetência, do compadrio e da obrigação que, culturalmente, cabe aos guineenses melhor colocados na vida, de tomar conta dos outrs parentes. Este é um pormenor que atenua muito o conceito europeu do nepotismo e até mesmo da corrupção.
Os detentores do poder- os homens que tinham feito a guerra - e a gente que circulava à sua volta sonhava com uma vida desafogada, perdulária mesmo, sempre em viagens e muito pouco atentos às necessidades reais das populações, particularmente as do interior.
Pressentiam-se tensões no interior do poder. De um lado, os cabo-verdianos, que asseguravam, de um modo geral, a condução da coisa pública. Do outro, os guineenses, das várias etnias, a pressionarem o aparelho. Aos poucos, o país ia caminhando para a condição de cidade-estado: Bissau.
Os detentores do poder- os homens que tinham feito a guerra - e a gente que circulava à sua volta sonhava com uma vida desafogada, perdulária mesmo, sempre em viagens e muito pouco atentos às necessidades reais das populações, particularmente as do interior.
Pressentiam-se tensões no interior do poder. De um lado, os cabo-verdianos, que asseguravam, de um modo geral, a condução da coisa pública. Do outro, os guineenses, das várias etnias, a pressionarem o aparelho. Aos poucos, o país ia caminhando para a condição de cidade-estado: Bissau.
Os dinheiros da ajuda pública permitiam, entretanto, a existência de vários projectos e estudos. A capital estava repleta de estrangeiros, cooperantes, envolvidos em todos eles. Os portugueses estavam sobretudo no sector do ensino.
O Liceu Kwame N'Krumah era bem o espelho da sociedade guineense daquele tempo. Um pormenor: não havia conflitos entre os alunos, apesar de a capacidade das instalações estar largamente ultrapassada. Lembro-me de dar aulas uma tura com 65 alunos a que, de vez em quando, se juntava um número indiscriminado de assistentes. Costuma brincar dizendo que aquilo não era uma aula, mas um espectáculo, a que só faltavam os holofotes e o director de cena.
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