2005/07/30

O Começo II

Não gostaria de cansar quem vai lendo estes apontamentos, mas cada vez mais se vai enraízando em mim a ideia de que, a propósito da história do "África", posso, de uma vez, satisfazer o pedido de alguns amigos, sobretudo dos mais jovens, que insistem comigo: "quando contas o que sabes...quando fazes um livro...?"

Não tenho jeito para livros, sempre escrevi sob a pressão do microfone ou da rotativa. Tenho, como toda a gente, coisas na gaveta, mas essas fazem parte da pele. É difícil largá-las.

Ao continuar com este testemunho, feito de memória, gostava que ele não fosse interpretado como uma viagem ao meu umbigo. Gostava que ele fosse entendido como um contributo à explicação de algumas coisas que nunca foram explicadas - também porque faltou a coragem de para o fazer da parte de quem podia. ( A este propósito também recordarei alguns episódios que falam da chamada liberdade de expressão em Portugal)

Regressemos então a Abril de 1977, já em Luanda.

De um dia para o outro, senti-me entrar em pânico. Valeu-me a companheira, determinada a levar-me dali. Ela mais do que pressentia, sabia os riscos que eu corria. Impediu que contasse as minhas verdadeira intenções a alguns amigos que faziam parte do governo - as fidelidades deles não eram com as amizades e ela sabia isso.

Finalmente, a 17 de Abril, conseguimos dois lugares num avião rumo a Lisboa. Ainda me lembro da sensação: por um lado sentia toda a minha vida ruir e por outro receava que o avião voltasse para trás - já tinha acontecido várias vezes.

Felizmente não aconteceu e chegámos à Portela: corredores cheios de gente, muitos deles conhecidos, olhos de ódio, insultos em surdina e ao fundo o meu irmão, surpreso por me ver. Ele apenas esperava a grávida.

Ali estávamos os dois, com uma mala cheia de nada e um filho que haveria de nascer no final de Maio desse ano. Três dias antes, a 27, ocorreu o que eu vaticinava: Nito Alves tentou o assalto ao poder central - a única coisa que lhe faltava, já que dominava as estruturas sectoriais e provinciais do partido. (Teremos, seguramente tempo para mais alguns pormenores desta fase da História de Angola).
Por agora, apenas um pormenor: os meus pressentimentos e as certezas da Zi estavam certos: soubemos que por volta do fim do mês de Abril, uma equipa da DISA, de Luanda, e da facção Nito Alves, tinha ido ao Lubango para me prender... A polícia política daquela cidade sempre se recusou fazê-lo.

Em Portugal, para um jornalista com o meu curriculum, sobretudo político, a coisa não era fácil: as estórias que eu tinha para contar assustavam toda a gente. A direita porque não as queria contadas por mim e a esquerda acusava-me de estar a favorecer a "reacção". E todos eles tinham medo de perturbar as já perturbadas relações com Angola.

Por essa altura, quem era da esquerda não era da direita e quem era da direita não era da esquerda.. e ninguém podia ser de coisa nenhuma, assim mesmo, um absurdo colectivo a girar em torno de conceitos gastos, ultrapassados e que obrigavam ao esquecimento das realidades.

A Rádio, que era o meu meio, estava repleta de gente que entrou sob a pressão dos chamados retornados, uma classificação que sempre rejeitei. Pertenço ao numeroso grupo dos que não passou pelo IARN - estou, portanto, fora das contas que habitualmente se fazem para avaliar o número de portugueses que regressou das ex-colónias.

Nos jornais, as conversas eram verdadeiros inquéritos policiais. Toda a gente queria saber de que lado eu estava e ninguém admitia que eu tinha o meu lado.

Desempregado - situação que apenas conhecera durante um período, na sequência das minhas posições depois do 25 de Abril- recorri ao curso, concorri para dar aulas e fui parar à Escola Secundária de Lagos, onde descobri uma situação de colonialismo interno confrangedora.

Viver em Portugal passou a ser insuportável. Candidatei-me a um contrato de cooperação como professor para a Guiné Bissau. Ver, no terreno, o produto da teoria de Amilcar Cabral, que me fascinava desde sempre, era também um objectivo.

Lá fomos os três juntos. Até aí, eu estava em Lagos e a Zi e o Daniel Filipe em Torres Vedras.

Quando, em Novembro de 1977, a porta do avião se abriu no aeroporto de Bissalanca, as assistentes de bordo da TAP olharam para o pimpolho e disseram : "coitada da criança". Aquela humidade e aquele calor não eram novidade, mas confesso que receei por ele.
Afinal, não foi assim tão mau: crescia a olhos vistos e adorava, ao fim da tarde, fazer um passeio pela marginal de Bissau, junto ao porto do Pidjiguiti. Quando o clima começou a ser mais inclemente e a faltarem algumas frutas, veio ter com a avó, que também tinha deixado a fazenda e "asilado" em casa do pai e da mãe, em Santarém. Já eles tinham regressado da Caala, onde deixaram a sua vida.
Em Bissau respirava-se um clima de grande tranquilidade e segurança. Dávamos aulas a turmas de adultos, à noite, e havia dias em que a Zi voltava a casa, na antiga messe da Marinha, por volta da meia-noite, sózinha, e nunca houve um único sinal de perigo. De resto, ela era uma mulher de armas: já em Angola protagonizou a única viagem que se fez entre Luanda e o Lubango, 1.113 quilómetros, logo a seguir à retirada das tropas sul-africanas, numa estrada sem pontes e cheia de minas. (prometo voltar a esta aventura...)
Era presidente da República Luís Cabral e primeiro-ministro Chico Té. Nino Vieira era o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas. Foi nessa Bissau que reencontrei o Xavier de Figueiredo, então correspoindente da ANOP e com quem comecei a falar sobre o projecto que viria a ser o "África Jornal"

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