2005/07/30

O Começo

Antes iniciar a história do "África", talvez valha a pena dizer-vos que aquela sugestão do António Gonçalves - voltar a fazer o "África" - gerou algum desassossego junto dos mais próximos. Ideias....ideias. Prometo pensar nelas durante as férias. Lá para Setembro talvez algumas se sintam com pernas para andar.

Mais do que uma estória, o que se vai seguir nos próximos tempos é um testemunho. Talvez ele valha a alguém, talvez sirva para os próximos avaliarem de uma outra maneira a minha geração. Talvez a minha geração - os que comigo foram desenraízados (não sempre do mesmo modo, mas desenraízados) encontrem aqui algumas das justificações que lhes faltam.

Era Abril de 1977 e em Angola corriam lutas surdas nos corredores do poder. Entendia o que se passava, tinha posição: entre Nito e Neto escolhia, obviamente ,Neto, mas o "meu" MPLA não acertava com nenhum do deles.

Desde Fevereiro de 1976 que me desgastava com grande entusiasmo a construir a parte que me cabia: adminsitrava fábricas, dirigia a Universidade, a Rádio Popular, com uma emissão em português e mais cinco línguas nacionais, fundei um jornal - nestas tarefas todas sempre criei equipas novas, de cuja formação me encarregava. Rejeitei desde o princípio o projecto de estado cubano: levar para Cuba a juventude angolana e formá-la lá.

Tinha pouco tempo para dormir e, mesmo assim, algumas vezes tive que me levantar a meio do sono para ir em socorro de alguns amigos cujas casas tinham sido invadidas por faplas bêbados que tinham resolvido fazer rusgas de madrugada.
A par disso tinha que suportar a hostilidade das tropas cubanas, que se comportavam como exército de ocupação e não entendiam o que é que eu e outros como eu ainda estavamos a fazer em Angola. Para eles, nós éramos apenas estrangeiros. Obrigaram-me a sair de minha casa e depois afrontaram-me em outra em que me instalei.
Ocuparam os emissores da antiga Rádio Comercial, instalados no Cristo Rei e preparavam-se para os levar para Cuba, onde, ainda do tempo de Fulgêncio Batista, existiam muitos iguais aqueles RCA de 10 Kws.
Haverá seguramente oportunidade para contar outros episódios...
Voltemos a Abril de 1977. Para mim era óbvio que se aproximava uma desgraça: as forças que se degladiavam a todos os níveis da vida política e social, deixando para trás os aspectos mais importantes, relacionados com a vida das populações, não tardaria recorreriam à força.
Dei conta de que o meu nome fazia parte das duas listas e imaginei-me a rolar pelo belo precipício da Tundavala - onde já tinham sido jogados outros menos activos que eu - e resolvi sobreviver.
A minha mulher, a Zi, estava grávida. Ambos tínhamos acreditado na possibilidade de um Mundo Novo com uma Nova Vida. Mas foi tudo tão diferente: botas a bater nas escadas a lembrar os filmes dos nazis, gente humilhada apenas porque a cor da pele deixou de conferir, insulto fácil, roubo institucionalizado, incompetência instalada, arrogância a extravasar da mediocridade...
Com tudo isto, ela resolveu começar a tratar dos papéis para sair.
Não é possível pedir a quem nunca viveu num regime de partido único pseudo-marxista-leninista-stalinista que imagine a dimensão das tarefas necessárias para reunir os documentos necessários para sair. São montes de papéis fúteis, declarações idiotas. A certa altura exigiam a quem quisesse sair um atestado de bom comportamento moral e civil.
No meio da pressão e da amargura, da desilusão, ainda havia algum espaço para o humor: "em Angola só poderiam ficar as putas, chulos e vigaristas..."
Aproveitei a boleia e, formalmente, fui ao aeroporto do Lubango levar a minha mulher . Por sorte do Boing 737 que nos havia de levar para Luanda estacionou com as portas viradas para a pista e ninguém me viu sair. Para trás ficava o Lubango, os meus amigos, de quem não tive coragem para me despedir - talvez porque fosse perigoso fazê-lo.
Eu não tinha passaporte, fotografias, nada disso, tinha passado todo o tempo ocupado nas tarefas de construção de um país novo. Chegado a Luanda tive que recorrer aos amigos: para as fotografias e passaporte, a Terezinha Mendes (alguns dos episódios relacionados com as fotografias davam um filme...)
De posse do passaporte, faltava o visto e agora, que já passaram muitos anos, sempre posso revelar que quem me ajudou foi o meu velho companheiro e amigo do Colégio D. João de Castro, de Nova Lisboa, o Manuel Ruio Monteiro, hoje escritor celebrado (começámos ambos a escrever um livro na velha Remington do pai dele, mas, claro que nunca passou da primeira página...)
Pois, foi o "Cantinflas" que mandou a Fátima, a secretária dele, comigo ao ministério das relações exteriores com a recomendação de "contar uma estória ao Garcia Bires melhor que a minha, que estava cheia de falhas".
Vinte minutos depois tinha o milagroso carimbo num passaporte português novo - o meu primeiro.

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