2005/08/09

Bissau

Bissau é um sofoco. Tem mar,mas para o prazer da praia é necessário viajar para os Bijagós - Bubaque. Vamos até lá um fim de semana, a bordo de um daqueles velhos Dakotas que se usavam em Angola para ligar Luanda às restantes capitais de distrito, em tempos muito recuados (anos 50).
Os Bijagós são uma espécie de paraíso dos pobres. Lá, quem manda são as mulheres, escolhem e rejeitam os homens, administram a propriedade da terra, que não tem dono. Naquele tempo (77/78) recusavam-se pagar impostos e integrar-se no estado - novo ou velho, eles não queriam aquela autoridade, nenhuma autoridade que lhe fosse exterior.
Em Janeiro de 78 ano, as FARP tinham bombardeado umas quantas Ilhas - só para assustar. Parece que não resultou.
Bubaque é uma Ilha simpática e em 1978 havia lá uma pousada explorada por um sueco. Tinha um bungalow especial para o Luís Cabral, que, de resto, confraternizava com as pessoas que por lá andavam. Um dia mandou para a nossa mesa algumas frutas do filho dele, que tinha a idade o Daniel Filipe. Foi simpático.
O fim de semana da família ficou registado com algumas fotografias e uma viagem a Bolama, a verdadeira capital colonial, com edifícios espantosos, de colunatas gregas... e uma grande vala a meio da principal avenida da, naquela altura,cidade-fantasma.
Houve outras viagens para o interior onde descobrimos os poilões e a terra vermelha de sangue. Sem cheiro.
Na Páscoa eu fui para o Norte: Varela, com passagem por Cacheu, S.Dominhos, um batuque interminável, depois de uma viagem em canoa inolvidável.Nunca tinha visto semelhantes condições de transporte. Havia uma mulher que para proteger um filho ainda bebé de qualquer acidente o protegia com o corpo contorcendo-se de tal modo que receei se rasgasse.
De S. Domingos até Susana, uma boleia simpática e um acolhimento cordial na missão católica italiana. Uma noite de conversa com os padres que mantinham uma actividade impressionante, quer ao nível da escola, quer no plano dos trabalhos agrícolas e outros. A missão fervilhava. O trabalho começava assim que nascia o Sol. Se na Guiné Bissau havia uma revolução, ela estava ali.
De Susana para Varela fomos a pé (eu, o Zé Nascimento e a Clara Campino) por caminhos arenosos difíceis de percorrer. Fomos encontrando um povo simpático, hospitaleiro, os Felupes, sobre os quais se contam coisas espantosas.
Nas ruínas do que foi a estância de repouso das elites coloniais anteriores à guerra e onde se notava, inclusivé, a existência de canalização para água quente, montámos o nosso acampamento.A cerca de 300 metros o Atlântico rolava nas areias douradas que se prolongavam pela fronteira do Senegal.
Depressa percebemos que raramente estávamos sózinhos. O pessoal mais jovem da aldeia próxima espreitava-nos e, aos poucos, foi-se aproximando. Acabaram por servir de ligação com as populações adultas. Ficámos sob a protecção deles. Inclusivé, tomávamos banho nas instalações comunitárias da aldeia, construídas sem portas,em forma de um caracol e com o chão atapetado de conchas brancas.
Populações islamizadas, ali o PAIGC tinha resolvido com inteligência a questão do poder: nomeou como presidente do comité do partido o chefe religioso local.
O regresso foi mais doloroso, mas quando chegámos a Bissau tínhamos coisas novas para contar: um povo, que, teoricamente ,se governava por uma direcção secreta, que administrava a justiça de forma estranha...Enfim, um mundo completamente novo.
A ideia do jornal ia ganhando novos terrenos para explorar. Começava a ganhar forma a ideia de transformar os diversos povos africanos no centro de um jornal. Eu amadorecia. Às vezes de forma violenta. Foi em Bissau que descobri que para os africanos a Independência não significava uma oportunidade de estabelecer relações de igualdade com outros povos, com outra gente.
Não. Para a maior parte deles tinha havido, pura e simplesmente, uma inversão: agora quem impunha, quem mandava, ainda que sem qualquer critério ou sentido de justiça, eram os africanos, os negros. Já tinha experimentado em Angola a violência do racismo,mas na Guiné Bissau percebi porquê. Esta era mais uma razão para levar ávante a ideia de um jornal tendo como centro África e as suas gentes. Naquele tempo já pensava que as dificuldades estimulam e que não se deve recuar perante elas.

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