Vivia-se uma fase de impasse na guerra. De um lado, as forças cubanas, do outro, as sul-africanas. A imprensa internacional falava das tropas do MPLA e da UNITA e da cidade do Kuito-Kuanavale.
As cores das tropas, enfim, mas a cidade...meu Deus. Santa ignorância! Havia, de facto, meia dúzia de casas ao longo de uma rua. Em tempos eram lojas de comerciantes que faziam o seu negócio permutando vinho, cobertores, bicicletas, aspirinas, injecções de penincelina, e tudo o que se pode imaginar, pelos cereais (sobretudo milho) que se cultivava naquela zona. E Havia também uma Escola. Mas estava tudo em ruínas, com os adobes à mostra, a maior parte sem telhados.
Ali é o ponto de encontro de dois rios , o Kuito e o Kanavale e os militares do MPLA tinham traçado ali uma linha, que, uma vez rompida, permitiria à UNITA infiltrar mais tropas no Bié e daí destabilizar completamente todo o Planalto central, afectando ainda mais o Caminho Ferro de Benguela.
A eventual criação de condições para instalar as tropas da UNITA no Bié, donde eram naturais grande parte dos seus dirigentes, permitir-lhes-ia, perante a comunidade internacional, romper com o anátema de terem a sua base principal fora do território angolano, na faixa de Caprivi, sob a protecção sul-africana.
Em Março (de 8 a 19) de 1988, eu e a fotógrafa do "África", a Ana Consolado, partimos para Luanda, integrados num grupo de jornalistaas que ia visitar a frente de batalha. A viagem de Luanda para o Kuito foi feita num avião Antonov, com uma tripulação angolana, muito jovem. Recordo o nome do seu comandante, o Praia. Essa mesma tripulação, fazendo a mesma viagem, seguindo a mesma rota, na semana seguinte, foi abatida.
Durante aqueles dias de Março viajámos nos mais diversos transportes, desde o Antonov a um blindado atolhado de granadas de RPG7, com fios descarnados à vista e uma temperatura interior incrível. Também utilizámos um helicóptero MI17, com um tambor de combustível suplente.
Fizémos a espiral da morte por várias vezes num "Casa", um avião que os angolanos tinham comprado a Espanha e que era um produto da cooperação espanhola com a Indonésia.
Não faltaram emoções. Quando estávamos na zona de confluência dos dois rios, com uma ponte parcialmente destruída, os sul-africanos bombardearam a zona com os célebres canhões G-5.
As reacções a este incidente foram espantosas. O correspondente da Agência Nova China ficou, primeiro meio paralisado, depois vomitou-se todo, de amarelo ficou verde, o Patrick Reina, da AP, deixou cair todo o equipamento ao rio, o Luís Vasconcelos (fotógrafo) ficou para trás à espera de apanhar qualquer coisa de diferente. A Ana Consolado empurrava toda a gente para dentro do blindado. O major que nos acompanhava gritava : "arranca com essa merda!" e a Ana opôs-se! Ainda faltava o Luís.
Eu tinha uma das máquinas fotográficas da Ana nas mãos e consegui disparar a última película que o filme ainda tinha. Agarrei o cogumelo de terra e água que se formou depois do impacto da primeira granada. Não serviu para nada - não dava imagem para o jornal. Está no arquivo apenas como recordação.
Nesta viagem houve vários incidentes. Quando chegámos ao Kuito misturaram-nos com um grupo de jornalistas dos chamados países "socialistas". Objectivos diferentes, visões opostas, conflitos óbvios. Exigimos não viajar com eles. Foi atendida a nossa exigência.
Noutra ocasião puseram-nos uns prisioneiros da UNITA à frente para lhes fazermos perguntas. O pessoal ficou incomodado e lá conseguimos explicar que "até podíamos ler um relatório da polícia, mas não faziamos perguntas a homens que não eram livres..." silêncio pesado na sala, mas a posição, assumida por todo o grupo, foi compreendida.
Na noite que passámos no Kuito, numa antiga pensão dos tempos coloniais, transformada quase em casa de horrores - os cubanos é que mandavam e, por conseguinte, faziam os possíveis por nos transformar a vida no chamado "inferno"- havia de tudo: pulgas, percevejos, um cheiro pestilento. E não havia água. A Ana e a Jill Jolliffe, que também fazia parte do grupo, protestaram o mais que puderam.
Pela minha parte assumi que estava em guerra. Podia, por isso, acontecer ainda bem pior.
De repente, olho para o lado, porque me chega um odor forte a Chanel 5. A boa da Jill tinha apanhado um cobertor mais ou menos limpo e, para se proteger da bicharada, enrolou-se nele. Para se proteger do cheiro despejou quase inteiro um frasco do dito perfume. Enfim... a noite acabou (começou) em gargalhada.
No final desta viagem, de que, evidentemente, tenho outros episódios para contar, a Jill e o António Gonçalves - agora meu companheiro no "Africandar"- escreveram duas belas crónicas a resumir as suas emoções durante a viagem.
Já as scanarizei e tudo, mas falta-me o resto da ciência e habilidade para as reproduzir aqui. Vou tentar aprender. Prometo republicá - las um dia destes.
3 comentários:
boa história, camarada. se tens problemas em publicar fotos, posso-te dizer como se faz. um abraço
Caro Leston, foi com surpresa que visitei este blogue, mas foi com surpresa tambem que fiquei sem saber se o amigo estava falando da cidade do Kuito capital da Provincia do Bie ou da vila do Cuito-Cuanavale o que a bem dizer nao e a mesma coisa e so para nao me enganar devo que dizer que a distancia entre ambas e de 500 km, como angolano que sou tambem e a primeira vez que oico falar no rio Kanavale!!!! Sendo que o maior afluente do Cuito e o Longa, quanto a historia e muito dispare pois nao percebi se fala da frente de batalha ou do recuo... essa sua foto de arquivo faz-me lembrar uma imagem da Batalha do Somme onde o jornalista tambem tirou uma foto do rebentamento de uma mina... quanto ao resto vou visitando-o com mais frequencias.
Kandandus
Bem; o amigo corrija-me se quiser...
O Cuito Cuanavale nunca foi nem nunca pertenceu a UNITA nem nunca pertenceu as SADF.
O Cuito foi o recuo mais obvio que as FAPLA e as tropas cubanas encontraram quando foram incapazes de travar o avanco sul africano aquando da independencia de Angola no sul de Benguela, (mas essa e outra historia).
Sendo o Cuito foi um local tanto para as FAPLA como para as forcas cubanas de vital estrategia, ja que o aerodromo que possuia permetia-nos controlar a fronteira e ou lancar ataques a partir das suas bases; sendo; em Agosto de 1987 decidiu-se que seria a partir dali que seriam lancados os ataques aos bastioes da UNITA na Jamba e Mavinga, suportados pelo apoio aereo lancado das bases de Menongue...
Ora os sul africanos com a sua politica de destabilizacao e para assegurar a continuidade da UNITA na zona tampao que se tinha formado na fronteira, lancaram-se em defesa do Galo Negro.
1- A ocupacao da Namibia era condenada pelo tribunal internacional como abusiva...
2- Se as forcas da alianca vecenssem a batalha a UNITA desapareceria do Mapa de guerra e assim a Zona Tampao seria zona vulneravel aos ataques lancados pela SWAPO de Angola para a Namibia...
Foi a maior batalha terreste depois da Segunda Guerra Mundial, foi o ponto de viragem para toda a Africa Austral com inclusao de um pequeno aviso para Robert Mugabe e tudo. Ze Du avisou Lusaka pelos MIGS 23, com esta batalha as SADF perderam a hegemonia militar em Africa e foram derrotadas em toda a linha; dois anos mais tarde a Namibia era independente, e Angola tinha criado todas necessarias reformas para que Cubanos e todas as outras tropas beligerantes no conflito retornassem a casa, incluindo os sul africanos... pois o fim do Apartheid tambem estava no fim.
Os angolanos tinha vencido mais uma vez, a mal ou a bem ca estamos para outra batalhas vindouras.
Paulo Martins
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