2005/07/31

Começo IV

Não é bem, mas parece um telenovela brasileira.
Estamos então em Bissau 77/78.

É embaixador de Portugal, António Pinto da França, que, apesar de toda a sua habilidade como diplomata não conseguia - percebia-se - convencer os poderes de Lisboa que valia a pena apostar na divulgação cultural, no incremento do ensino da língua em moldes correctos e não partindo do princípio de que o português era a língua materna de toda aquela gente.

As relações dos cooperantes com a embaixada não eram as melhores. Continuo a pensar que, durante este ano lectivo Bissau teve um grupo de professores especialmente dedicado e profissional. Alguns anos depois, quando regressei à Guiné Bissau, como correspondente da ANOP para ser expulso ao fim de 40 dias do exercício das funções (aqui está mais outro parêntesis prometido), ainda se falava da excelência desse grupo.

É verdade que também aconteceram alguns azares, como, por exemplo o caso do Luís Vaz - até há pouco tempo director de um dos colégios da Casa Pia - que resolveu fazer discursos políticos na festa de finalistas dos alunos do Liceu e acabou por ficar retido em Bissau durante alguns meses.

E houve, igualmente, em Agosto de 1978, uma cena da polícia política, a segurança, comandada por um senhor chamado Buscardini - que haveria de morrer durante o golpe de 14 de Novembro de 1980 - que queria obrigar alguns de nós a ir buscar os passaportes à Segurança, uma espécie de ameaça que se usava como que querendo submeter os portugueses ao mesmo tipo de medo a que se sujeitam os nacionais.

É que apesar de toda a moderação, a Guiné Bissau era governada por um partido único, que também governava Cabo Verde e, por aquelas alturas o poderio militar dos guineenses era ainda assinalável. Na polícia política havia a cooperação cubano-soviética, bem como nas forças armadas. Era tudo muito secreto.

Bom... a verdade é que, pela minha parte, comuniquei ao embaixador de Portugal que o facto de a polícia política ter ficado com o meu passaporte para lhe colocar um visto de saída era um problema dele e não meu, pelo que o sr. embaixador foi falar com o sr. Buscardini e lá se revolveu o problema. Não saímos de Bissau a 5, mas a 12 de Agosto. Uma semana por causa de uma birracom uma explicação:
A maior parte dos alunos dos cursos da noite eram, de facto, os funcionários do aparelho de estado e necessitavam de obter aprovação nos exames para subirem nas carreiras. É verdade que alguns se esforçavam, mas outros, como se entendiam a si mesmos como heróis pelo esforço a que se sujeitavam cumprindo horários pesados de aulas à noite, depois de um dia de trabalho, recorriam a todos os estratagemas. Sobretudo os que trabalhavam em sectores chave, como por exemplo, a tal segurança.
Por exemplo, um deles, em pleno exame, enquanto olhava para a folha de papel em branco ia-me "informando" que o meu passaporte estava com ele. E nós dependiamos de um visto de saída, mesmo depois de terminado o nosso contrato...

Começo III

O melhor é assumir: a estória do "África" que eu pretendo contar toda vai ter muitos parêntesis. Não é fácil resistir-lhes. A verdade é que todos os esforços que tenho feito para esquecer o "África" e tudo o resto foram em vão e, de repente, a propósito de uma conversa na Rádio, começa tudo a ser muito claro na minha cabeça.

Têm aparecido muitos escritos sobre acontecimentos de que fui protagonista, uma vezes, observador privilegiado, outras, e a poucos reconheço veracidade. São relatos de relatos e, por isso, não correspondem ao que realmente aconteceu. Sempre os tenho ignorado. Um desenraizado não pode andar sempre a olhar para as raízes fora da terra, como soldado na guerra de tripas na mão à procura de uma equipa médica...

Mas, agora que as raízes estão a tomar conta do espaço, ouçamo-las. Vamos aos parêntesis. Espero ter a compreensão dos que me vão lendo.

Vamos ao mais recente desta narrativa, já que gostava de evitar um relato cronológico.

Guiné Bissau - 1977/78

Reinava a paz por todo o território, viajava-se normalmente, com um ou outro controlo, mas nada que se comparasse ao que, na mesma altura, acontecia em Angola. A capital era uma cidade arrumada e limpa, mas nas lojas havia pouca coisa para comprar. Só nos Armazéns do Povo, uma organização que vinha do tempo da guerrilha.

E aqui, nesta ausência de comércio, está o primeiro grande erro político do PAIGC. A nacionalização do pequeno comércio foi uma medida que contrariou a estrutura social de toda a região, históricamente conhecida por zona de entrada e saída de mercadorias. Foi, de resto, a partir dali que os europeus penetraram para o interior.

Destruído o pequeno comércio, a população da Guiné Bissau passou a vender ou para o Senegal, ou para a Guiné Conackry, o que produzia. É interessante verificar, por exemplo, que à redução da produção de arroz verificada no Norte do país, nos anos a seguir à independência, correspondeu uma subida da produção no Senegal. Os números justapoêm-se.

O Estado passou a ser o grande patrão e o respectivo aparelho foi sendo tomado de assalto pela pequena burguesia, que, não tendo estado na luta, assumia a independência como uma oportunidade.

Nos primeiros anos, a unidade criada na guerra, as solidariedades aí desenvolvidas foram sendo substituídas pelas teias de interesses em torno do Estado, que, entretanto, recebia a maior ajuda externa alguma vez dada a um país chegado à independência depois de uma guerra de libertação.

O PAIGC tinha um enorme prestígio internacional que se transformou numa espécie de galinha de ovos de ouro.

A aparente facilidade com que o país instalou uma linha de montagem de automóveis - os Mehari - apresentado publicamente como o "orgulho dos combatentes da liberdade da pátria", a designação que se dava aos homens e mulheres que tinham participado na guerrilha, foi contribuindo para a criação de um clima de pura ilusão. Ilusão ampliada com a notícia da edificação de grandes projectos de fábricas para o aproveitamento do cajú e outras; aproveitamento dos fosfatos, empresas mistas de pescas, etc.
Uns não passaram de notícias e outros foram ruindo sob o peso da imcompetência, do compadrio e da obrigação que, culturalmente, cabe aos guineenses melhor colocados na vida, de tomar conta dos outrs parentes. Este é um pormenor que atenua muito o conceito europeu do nepotismo e até mesmo da corrupção.

Os detentores do poder- os homens que tinham feito a guerra - e a gente que circulava à sua volta sonhava com uma vida desafogada, perdulária mesmo, sempre em viagens e muito pouco atentos às necessidades reais das populações, particularmente as do interior.

Pressentiam-se tensões no interior do poder. De um lado, os cabo-verdianos, que asseguravam, de um modo geral, a condução da coisa pública. Do outro, os guineenses, das várias etnias, a pressionarem o aparelho. Aos poucos, o país ia caminhando para a condição de cidade-estado: Bissau.
Os dinheiros da ajuda pública permitiam, entretanto, a existência de vários projectos e estudos. A capital estava repleta de estrangeiros, cooperantes, envolvidos em todos eles. Os portugueses estavam sobretudo no sector do ensino.
O Liceu Kwame N'Krumah era bem o espelho da sociedade guineense daquele tempo. Um pormenor: não havia conflitos entre os alunos, apesar de a capacidade das instalações estar largamente ultrapassada. Lembro-me de dar aulas uma tura com 65 alunos a que, de vez em quando, se juntava um número indiscriminado de assistentes. Costuma brincar dizendo que aquilo não era uma aula, mas um espectáculo, a que só faltavam os holofotes e o director de cena.

2005/07/30

O Começo II

Não gostaria de cansar quem vai lendo estes apontamentos, mas cada vez mais se vai enraízando em mim a ideia de que, a propósito da história do "África", posso, de uma vez, satisfazer o pedido de alguns amigos, sobretudo dos mais jovens, que insistem comigo: "quando contas o que sabes...quando fazes um livro...?"

Não tenho jeito para livros, sempre escrevi sob a pressão do microfone ou da rotativa. Tenho, como toda a gente, coisas na gaveta, mas essas fazem parte da pele. É difícil largá-las.

Ao continuar com este testemunho, feito de memória, gostava que ele não fosse interpretado como uma viagem ao meu umbigo. Gostava que ele fosse entendido como um contributo à explicação de algumas coisas que nunca foram explicadas - também porque faltou a coragem de para o fazer da parte de quem podia. ( A este propósito também recordarei alguns episódios que falam da chamada liberdade de expressão em Portugal)

Regressemos então a Abril de 1977, já em Luanda.

De um dia para o outro, senti-me entrar em pânico. Valeu-me a companheira, determinada a levar-me dali. Ela mais do que pressentia, sabia os riscos que eu corria. Impediu que contasse as minhas verdadeira intenções a alguns amigos que faziam parte do governo - as fidelidades deles não eram com as amizades e ela sabia isso.

Finalmente, a 17 de Abril, conseguimos dois lugares num avião rumo a Lisboa. Ainda me lembro da sensação: por um lado sentia toda a minha vida ruir e por outro receava que o avião voltasse para trás - já tinha acontecido várias vezes.

Felizmente não aconteceu e chegámos à Portela: corredores cheios de gente, muitos deles conhecidos, olhos de ódio, insultos em surdina e ao fundo o meu irmão, surpreso por me ver. Ele apenas esperava a grávida.

Ali estávamos os dois, com uma mala cheia de nada e um filho que haveria de nascer no final de Maio desse ano. Três dias antes, a 27, ocorreu o que eu vaticinava: Nito Alves tentou o assalto ao poder central - a única coisa que lhe faltava, já que dominava as estruturas sectoriais e provinciais do partido. (Teremos, seguramente tempo para mais alguns pormenores desta fase da História de Angola).
Por agora, apenas um pormenor: os meus pressentimentos e as certezas da Zi estavam certos: soubemos que por volta do fim do mês de Abril, uma equipa da DISA, de Luanda, e da facção Nito Alves, tinha ido ao Lubango para me prender... A polícia política daquela cidade sempre se recusou fazê-lo.

Em Portugal, para um jornalista com o meu curriculum, sobretudo político, a coisa não era fácil: as estórias que eu tinha para contar assustavam toda a gente. A direita porque não as queria contadas por mim e a esquerda acusava-me de estar a favorecer a "reacção". E todos eles tinham medo de perturbar as já perturbadas relações com Angola.

Por essa altura, quem era da esquerda não era da direita e quem era da direita não era da esquerda.. e ninguém podia ser de coisa nenhuma, assim mesmo, um absurdo colectivo a girar em torno de conceitos gastos, ultrapassados e que obrigavam ao esquecimento das realidades.

A Rádio, que era o meu meio, estava repleta de gente que entrou sob a pressão dos chamados retornados, uma classificação que sempre rejeitei. Pertenço ao numeroso grupo dos que não passou pelo IARN - estou, portanto, fora das contas que habitualmente se fazem para avaliar o número de portugueses que regressou das ex-colónias.

Nos jornais, as conversas eram verdadeiros inquéritos policiais. Toda a gente queria saber de que lado eu estava e ninguém admitia que eu tinha o meu lado.

Desempregado - situação que apenas conhecera durante um período, na sequência das minhas posições depois do 25 de Abril- recorri ao curso, concorri para dar aulas e fui parar à Escola Secundária de Lagos, onde descobri uma situação de colonialismo interno confrangedora.

Viver em Portugal passou a ser insuportável. Candidatei-me a um contrato de cooperação como professor para a Guiné Bissau. Ver, no terreno, o produto da teoria de Amilcar Cabral, que me fascinava desde sempre, era também um objectivo.

Lá fomos os três juntos. Até aí, eu estava em Lagos e a Zi e o Daniel Filipe em Torres Vedras.

Quando, em Novembro de 1977, a porta do avião se abriu no aeroporto de Bissalanca, as assistentes de bordo da TAP olharam para o pimpolho e disseram : "coitada da criança". Aquela humidade e aquele calor não eram novidade, mas confesso que receei por ele.
Afinal, não foi assim tão mau: crescia a olhos vistos e adorava, ao fim da tarde, fazer um passeio pela marginal de Bissau, junto ao porto do Pidjiguiti. Quando o clima começou a ser mais inclemente e a faltarem algumas frutas, veio ter com a avó, que também tinha deixado a fazenda e "asilado" em casa do pai e da mãe, em Santarém. Já eles tinham regressado da Caala, onde deixaram a sua vida.
Em Bissau respirava-se um clima de grande tranquilidade e segurança. Dávamos aulas a turmas de adultos, à noite, e havia dias em que a Zi voltava a casa, na antiga messe da Marinha, por volta da meia-noite, sózinha, e nunca houve um único sinal de perigo. De resto, ela era uma mulher de armas: já em Angola protagonizou a única viagem que se fez entre Luanda e o Lubango, 1.113 quilómetros, logo a seguir à retirada das tropas sul-africanas, numa estrada sem pontes e cheia de minas. (prometo voltar a esta aventura...)
Era presidente da República Luís Cabral e primeiro-ministro Chico Té. Nino Vieira era o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas. Foi nessa Bissau que reencontrei o Xavier de Figueiredo, então correspoindente da ANOP e com quem comecei a falar sobre o projecto que viria a ser o "África Jornal"

O Começo

Antes iniciar a história do "África", talvez valha a pena dizer-vos que aquela sugestão do António Gonçalves - voltar a fazer o "África" - gerou algum desassossego junto dos mais próximos. Ideias....ideias. Prometo pensar nelas durante as férias. Lá para Setembro talvez algumas se sintam com pernas para andar.

Mais do que uma estória, o que se vai seguir nos próximos tempos é um testemunho. Talvez ele valha a alguém, talvez sirva para os próximos avaliarem de uma outra maneira a minha geração. Talvez a minha geração - os que comigo foram desenraízados (não sempre do mesmo modo, mas desenraízados) encontrem aqui algumas das justificações que lhes faltam.

Era Abril de 1977 e em Angola corriam lutas surdas nos corredores do poder. Entendia o que se passava, tinha posição: entre Nito e Neto escolhia, obviamente ,Neto, mas o "meu" MPLA não acertava com nenhum do deles.

Desde Fevereiro de 1976 que me desgastava com grande entusiasmo a construir a parte que me cabia: adminsitrava fábricas, dirigia a Universidade, a Rádio Popular, com uma emissão em português e mais cinco línguas nacionais, fundei um jornal - nestas tarefas todas sempre criei equipas novas, de cuja formação me encarregava. Rejeitei desde o princípio o projecto de estado cubano: levar para Cuba a juventude angolana e formá-la lá.

Tinha pouco tempo para dormir e, mesmo assim, algumas vezes tive que me levantar a meio do sono para ir em socorro de alguns amigos cujas casas tinham sido invadidas por faplas bêbados que tinham resolvido fazer rusgas de madrugada.
A par disso tinha que suportar a hostilidade das tropas cubanas, que se comportavam como exército de ocupação e não entendiam o que é que eu e outros como eu ainda estavamos a fazer em Angola. Para eles, nós éramos apenas estrangeiros. Obrigaram-me a sair de minha casa e depois afrontaram-me em outra em que me instalei.
Ocuparam os emissores da antiga Rádio Comercial, instalados no Cristo Rei e preparavam-se para os levar para Cuba, onde, ainda do tempo de Fulgêncio Batista, existiam muitos iguais aqueles RCA de 10 Kws.
Haverá seguramente oportunidade para contar outros episódios...
Voltemos a Abril de 1977. Para mim era óbvio que se aproximava uma desgraça: as forças que se degladiavam a todos os níveis da vida política e social, deixando para trás os aspectos mais importantes, relacionados com a vida das populações, não tardaria recorreriam à força.
Dei conta de que o meu nome fazia parte das duas listas e imaginei-me a rolar pelo belo precipício da Tundavala - onde já tinham sido jogados outros menos activos que eu - e resolvi sobreviver.
A minha mulher, a Zi, estava grávida. Ambos tínhamos acreditado na possibilidade de um Mundo Novo com uma Nova Vida. Mas foi tudo tão diferente: botas a bater nas escadas a lembrar os filmes dos nazis, gente humilhada apenas porque a cor da pele deixou de conferir, insulto fácil, roubo institucionalizado, incompetência instalada, arrogância a extravasar da mediocridade...
Com tudo isto, ela resolveu começar a tratar dos papéis para sair.
Não é possível pedir a quem nunca viveu num regime de partido único pseudo-marxista-leninista-stalinista que imagine a dimensão das tarefas necessárias para reunir os documentos necessários para sair. São montes de papéis fúteis, declarações idiotas. A certa altura exigiam a quem quisesse sair um atestado de bom comportamento moral e civil.
No meio da pressão e da amargura, da desilusão, ainda havia algum espaço para o humor: "em Angola só poderiam ficar as putas, chulos e vigaristas..."
Aproveitei a boleia e, formalmente, fui ao aeroporto do Lubango levar a minha mulher . Por sorte do Boing 737 que nos havia de levar para Luanda estacionou com as portas viradas para a pista e ninguém me viu sair. Para trás ficava o Lubango, os meus amigos, de quem não tive coragem para me despedir - talvez porque fosse perigoso fazê-lo.
Eu não tinha passaporte, fotografias, nada disso, tinha passado todo o tempo ocupado nas tarefas de construção de um país novo. Chegado a Luanda tive que recorrer aos amigos: para as fotografias e passaporte, a Terezinha Mendes (alguns dos episódios relacionados com as fotografias davam um filme...)
De posse do passaporte, faltava o visto e agora, que já passaram muitos anos, sempre posso revelar que quem me ajudou foi o meu velho companheiro e amigo do Colégio D. João de Castro, de Nova Lisboa, o Manuel Ruio Monteiro, hoje escritor celebrado (começámos ambos a escrever um livro na velha Remington do pai dele, mas, claro que nunca passou da primeira página...)
Pois, foi o "Cantinflas" que mandou a Fátima, a secretária dele, comigo ao ministério das relações exteriores com a recomendação de "contar uma estória ao Garcia Bires melhor que a minha, que estava cheia de falhas".
Vinte minutos depois tinha o milagroso carimbo num passaporte português novo - o meu primeiro.

2005/07/28

O "África" Hoje

Está aí, algures, um comentário que é bem de um amigo: do António Gonçalves ( só não percebi por que razão aparece outro nome a anunciar o dele próprio... enfim, coisas da Net)
Não é que ele sugere a possibilidade de o "África" de ontem ser mais útil hoje? E atreve-se a insinuar que eu seria capaz de o fazer ?
Confesso que fiquei parado. É que nos últimos dias fui ao sótão e estive a reler, a reler e entre cada leitura, as estórias foram fluindo, pareciam cerejas, palavras, eu sei lá, o passado a mexer-se. Lá estavam o Xavier, o João Van Dunem, o João Carneiro, O José Moreira. As reportagens de guerra , no Cuito Canavale ( que a imprensa internacional classificava de cidade), O Saara e a Frente Polisário, as críticas às plantações de fuba, descritas por uma jornalista de visita à Jamba.
Lá estava a Marina, o Miguel e o Zé (Higino) , a Ana Consolado, a escorregar pela parede e a atirar o correspodente da Nova China para dentro do blindado: um chinês verde, a vomitar, borrado de medo: as tropas do Savimbi ( leia-se África do Sul) tinham bombardeado um grupo de jornalistas com a célebre G-5.
À medida que ia lendo, apareceram outros: o Eugénio, a lutar pela sobrevivência, o Loja Neves a lutar pela carteira profissional que o Expresso lhe recusava, a Valentina, impodo-se pelo querer, o Miguel Rego, cheio de dúvidas , e, mais tarde a casar com a Zé, nas instalações do "África" , já na Possidónio da Silva. Com cerimónia e tudo. Éramos uma equipa, daquelas que pode ir à Lua e regressar.
E nessa equipa, lá estava o Fernando Alves, sempre em cima da hora e sempre com a língua de fora em trejeitos inimitáveis, a escrever a sua crónia " Boé de Sede", uma das coisas que ele melhor conseguiu e que só por si garantia leitura obrigatória em muitos sítios de África . Lúcio Lara, por exemplo, aguardava ansiosamente, o seu exemplar do "África " para ler o "Boé de Sede".
Boé ou Bué ? Grande discussão! Não estou nem aí.
Com todo este filme a passar-me a correr na memória, conseguiria, eu, hoje, dirigir um jornal onde a carreira de cada um fosse determinada por um diploma?
Que faria do Rui Parracho, o mais competente deles, na banca, na escrita, mas avesso ao carreirismo?
Como receberia hoje alguém como o AguaLusa, a quem demos a carteira profissional, que escreveu o que não devia nas costas do Director, prosseguiu na mentira, mas tem o talento da ficção?
Como conseguiria hoje resolver os problemas provocados por ter à frente um presidente da República, que, nervoso, não conseguia articular uma palavra e, para bem dele e minha tranquilidade, resolvi abandonar a sala, puxado pelo braço amigo do Mário de Andrade? É que ele está aí de novo, com a mesma ignorância, mas com o mesmo carisma...
Como suportar a arrogância dos embaixadores, detentores de uma confiança pessoal ilimitada mas nula preparação técnica, imaginando-se a si próprios imperadores da Turrquia ou coisa que os valha. E não falo apenas de embaixadores africanos em Portugal...
Como encarar a "concorrência" feita de revistas coloridas cujos proprietários estão dispostos a apostar num novo negócio, o das "publicações de temática africana"?
Entre estas, para além do inimitável "ÁFRICA hOJE", cujo título era do Xavier de Figueiredo, publicava-se uma outra de uma organizaçlão chamada ELO, por onde passavam as chamadas iminências pardas do colinialismo e que achavam "entender de pretos". Entre essas ilustres figuras estava o Luís de Sousa Macedo, mais tarde Secretário de Estado do Cavaco e hoje, por obra do Espírito Santo, Secretário Geral da Portugal Telecom SGPS, responsável, nomeadamente pela área social de patrocínios - todos direitos para o futebol e outras coisas do género.
Que fazer?
Oh! António! Tu achas que há condições para erguer um projecto jornalístico tão idealista, tão isento, tão preocupado como o foi o "África"?
Ou tu achas que eu perdi força e estaria na disposição de encabeçar um projecto de informação sem orientação, sujeito apenas às leis do mercado e sem se preocupar com a mensagem transmitida? Esta não é, seguramente, a tua ideia.
Se houver alguém capaz de me garantir que eu posso fazer um jornal de que me possa orgulhar tanto como aquele que fechei a 31 de Maio de 1991, então vamos a isso. Força não falta!
António Gonçalves, meu querido amigo, tens a tua resposta.

2005/07/27

Os Amigos

Todos temos teorias ácerca de amigos. Seja ela qual for, no meu caso, confesso: é bom tê-los . A propósito deste blogue tem havido os telefonemas do costume. A Net está mais distante do que imaginamos de muita gente. Alguns, todavia, já apareceram com os seus comentários. O primeiro e mais aguerrido é de alguém que me conhece bem. O segundo veio do Fernando Alves, meu querido amigo de grandes batalhas desde tempos imemoriais. Algumas das nossas estórias talvez caibam aqui. Experimentarei, à medida que for acalmando este frenesim que, de repente, voltou a tomar conta de mim a propósito do " África".
Tempos houve que pouca gente percebia o entusiasmo com que eu falava de um projecto que era sobretudo uma enorme dor de cabeça...
Mas, adiante: falo de outros amigos que aqui apareceram com o seu testemunho: António Gonçalves, que durante algum tempo foi chefe de Redacção do "África", para onde transportou toda a sua longa experiência profissional, adquirida, nomeadamente ao serviço do "Notícia" a revista que era naquele tempo um pouco a televisão de Angola.
Leonel Cosme outro velho amigo, a quem ajudei a consolidar o Rádio Clube da Huíla e a iniciar a recuperação da Rádio Comercial de Angola, que, sob nossa gestão já tinha atingido, em Março de 1974 mais receitas do que em todo o ano de 1973. Claro que há explicações para tudo. Talvez também falemos disso...
O testemunho de Leonel Cosme neste blogue (deve ter pedido, seguramente, a um dos netos para o instruir no sentido de se apresentar na NET) é particularmente importante, já que testemunha com os olhos de quem conhecia outras realidades africanas, aquilo a que eu chamava o milagre cabo-verdiano.
A propósito: há muitos anos ( não sei precisar quando) escrevi um texto dizendo que Cabo Verde podia ser a Suiça de África. Recentemente alguém lançou a ideia. Afinal, agora não está longe de concretizar. Quando escrevi aquilo acreditava sinceramente nas comparações que fazia.
A todos eles, os que telefonam e os que escrevem ou os que simplesmente mandam recados, o obrigado.
Com tempo, devagar, vou contar tudo. Prometido

2005/07/24

A Estratégia do "África"

Já a prometi. Pode ser que sirva alguém. o "África" não era um negócio como depois aconteceu a inúmeros jornais "virados" para África, sem calendário, sem linha editorial, a explorarem apenas a vaidade dos presidentes, dos ministros e de algumas mulheres deles. De resto, os jornais, em Portugal também se transformaram em instrumentos de negócios - eles próprios eram (são) um negócio.
O "África", desde a sua edição "África Jornal", publicada à pressa pelo Xavier de Figueiredo, em 1984 - estava eu ainda em Cabo Verde como delegado da ANOP - tinha uma estratégia editorial, definida por mim próprio: um jornal, cuja principal função seria a de criar uma plataforma de informação entre o Norte e o Sul, servindo-se da língua portuguesa como instrumento e negando, como princípio a ideia de que havia um conflito Leste-Oeste e um diálogo Norte- Sul. Para o jornal "África", era exactamente o contrário: conflito Norte-Sul e diálogo Leste-Oeste.
Parece que o tempo nos veio a dar razão. Isso hoje não se discute.
Utilizaria um espaço de publicação que pouco tinha a ver com as realidades que tratava e, por isso, não estaria sujeito às pressões políticas do conhecimento fácil, do telefone acessível, do interesse anunciado, sugerido.
Do ponto de vista económico, como não tinha ninguém com família rica (sei lá...tipo Balsemão ou Ricardo Salgado...) tinha que ter uma estratégia multi-dependente, para ser independente. Isto é: na busca do apoio de todos construiria a sua independência editorial - um princípio fundamental, sem o qual não há um jornal que possa trasnmitir credibilidade a quem o lê.
Em princípio, sempre imaginei que Angola seria o estado mais virado para apoiar o projecto: conheciam-se, eu era dissidente do MPLA, mas tinha contribuído, muito, para a chegada daquele movimento ao poder . Há uma parte da história do Sul de Angola que não pode escrever-se sem o meu nome. No domínio da informação, há alguns episódios, a nível nacional, que também têm a minha acção inscrita. Fui um professor esforçado, um gestor interessado e sacrificado. Lutei a sério pela Independência de Angola.
Enganei-me: O novo poder angolano não conhecia o país e era um grupo de garimpeiros. Achavam que de tudo faziam dinheiro, inclusivé de um jornal com uma estratégia que implicava um anti-savimbismo puro, saudável, afirmado desde a primeira hora.
Como se percebe, a Unita - que era Savimbi - não era alternativa, embora o desejasse. Savimbi era mais esperto nesse domínio, mas também me reconhecia como seu inimigo. Prometeu "pendurar-me".
Moçambique desenvolvia uma guerra difícil com a África do Sul, mas também tinha gente convencida de que era capaz de realizar um projecto de comunicação capaz de suplantar o "África". Aquino de Bragança,conselheiro de Samora Machel e que com ele morreu no desastre de de 19 de Outubro de 1989, sempre me abordava num tom crítico e era, claramente, o homem que impedia uma aproximação de Samora Machel, o presidente que decidia tudo.
Por outro lado, um punhado verdadeiramente heróico de jornalistas moçambicanos desenvolvia o projecto da AIM, com Carlos Cardoso à frente. Todos eles - meia dúzia - achavam que eram capazes de conseguir vencer o Mundo. Acabámos, por, na medida do possível, apoiá-los. O Tomaz, que era correspondente da AMI em Lisboa, depois do Luís Lemos foi nosso colaborador.
A Guiné Bissau representava um regime sem rei nem roque. Os ministros ficavam à espera que entrasse algum dinheiro no Banco Central para viajarem. O Ministro dos negócios estrangeiros, Saúde Maria roubava as ajudas de custo que deviam ser pagas aos funcionários do ministério que com ele viajavam para Nova Yorque a fim de assistirem à Assembleia Geral da ONU.
Eu tinha sido expulso da Guiné Bissau e denunciei, tanto quanto pude, todos os crimes levados a cabo por Nino Vieira e a sua trupe. Portanto, era mais um a ficar do outro lado.
Ficava Cabo Verde e Portugal, mais a ponte que ambos poderiam fazer com Angola, sobretudo, e com o Brasil.
A estratégia de ligação informativa entre o Norte e o Sul passava pelo Brasil. Tentámos, de resto, lançar algumas pedras em S. Paulo, mas a diferença de linguagem conduziu-nos ao fracasso: quando eu falava de publicidade, o nosso homem pensava em advertising ( à americana), pelo que precisava- também - de dinheiro.
O Godofredo Stockinger, um austríaco apaixonado pelo Brasil e por Cabo Verde ajudou de várias formas, até com dinheiro. Mas, também não conseguimos.
Com os empresários portugueses foi e é (ao que parece) uma desgraça. O que eles querem é que não se fale deles, pela simples razão de que estão convencidos que "conhecem um preto qualquer" que, com uns trocados lhes vai abrir o negócio da vida deles. É na ambição estúpida dos empresários portugueses - e não só - e na pobreza miserabilista da maior parte dos dirigentes africanos que começa, se prolonga e se eterniza a corrupção. Jogo limpo? Com publicidade e as regras dos negócios bem claras? Isso é para a União Europeia ou para os Estados Unidos...quando é!

2005/07/23

Pequenas estórias - Timor Leste

É verdade: de repente, assim como se tivesse dado um salto para trás, vêm-me à memória pequenas estorias (as tais que fazem a História). O tal debate da RDP África foi a gota de água para me obrigar a reler o "meu" jornal e voltar a orgulhar-me do que fiz e do que permiti fosse feito.

Por exemplo, o "África" foi o único jornal português que, durante os sete anos em que existiu, nas suas várias versões, nunca fechou a porta a Timor Leste. Sempre nos batemos pela Independência de Timor, sempre acolhemos os textos dos dirigentes da FRETILIN, sempre lhes demos o nosso apoio.

Tanto assim que, um dia, nas habituais conversas que se seguem às entrevistas formais com os governantes, Durão Barroso me perguntou por que razão nós continuávamos a falar de Timor Leste: "é uma causa perdida" - garantiu-me. Afinal, não era e alguns anos depois não deixei de me surpreender com o entusiasmo de Barroso com a Libertação de Timor, que acabou, de resto, por ser uma das grandes causas nacionais portuguesas.

Há entre os actuais dirigentes timorenses quem não se esqueça do "África", embora manifestem a sua gratidão sempre de forma discreta. Teria sido bom que, na altura própria, tivessem gritado o seu obrigado a um jornal, que, não sendo de ninguém, sabia ser de quem dele precisava.

Pequenas estórias - Prof. Agostinho da Silva

Um jornal avalia-se pelo que publica e não pelo que se diz a seu respeito. A vontade que muita gente tinha de ver confirmadas as "suspeitas" que Carlos Veiga e os seus pares tinham levantado sobre o PAICV e os seus dirigentes, acusando-os de corrupção (alguns dos quais com contas no estrangeiro) levou-a a acreditar em tudo o que ouviam e liam, até porque - como já disse - não havia contraponto. Era só dizer mal, bater, era só porrada.

Afinal, bastava ler meia dúzia de números do jornal para perceber (algumas pessoas tinham essa obrigação) que estavam perante um jornal de grande qualidade e muito firme do ponto de vista editorial.

O prof. Agostinho da Silva, por exemplo, deu-nos a honra da sua amizade e além de assinar uma coluna semanal nas nossas páginas, ofereuceu-nos, assim, sem mais aquelas, a herança de todos os seus direitos autorais, depois da sua morte. Nessa altura preferimos desejar-lhe muitos anos de vida, agradecer-lhe a lembrança e recordar-lhe as nossas dificuldades e o receio de, um dia para o outro, deixarmos de ter condições de publicação.

Estratégias

Hei-de falar da estratégia do "África". Tenho a esperança de, desse modo, comunicar alguma coisa de interessante. Mas, agora, já que estou com a mão na massa, aproveito para fazer uma comparação de estratégias políticas: Pedro Pires e o PAIV construiram um país a partir da fome e das pedras. Edificaram-lhe fundamentos sólidos: identificação cultural e prestígio internacional, feito de seriedade, com reivindicação a ter uma voz.
Carlos Veiga e o MpD dividiram a sociedade cabo-verdiana, destruiram a credibilidade internacional, deixaram de ter voz activa no Mundo e abalaram profundamente a definição cultural do povo residente em Cabo Verde.
Como pequeno pormenor nesta estratégia, Carlos Veiga e o MpD atacaram, tentando destruir, o único órgão de comunicação social que prestigiava o país e o integrava no contexto internacional, valorizando as suas iniciativas diplomáticas e salientando o processo de desenvolvimento económico. social e político existente.
E porquê tentaram destruir?: porque imaginaram que os seus objectivos políticos não seriam entendidos pelo "África", pelo seu director e pela sua Redacção. Preferiram mesmo abrir logo as hostilidades, assim que ganharam o poder.
Cada dia que passa me leva à convicção de que Pedro Pires cometeu um erro imperdoável, de grande ingenuidade, ao pensar que, sendo o "África" conveniente a Cabo Verde também o seria para Carlos Veiga e o MpD.
Eram estratégias opostas: com Carlos Veiga e o MpD acabou-se a política dos pioneiros, dos construtores e iniciou-se a política da gestão dos interesses. Era perigoso apoiar um jornal com estratégia e pensamento próprios. É que, mesmo havendo concordância com Pedro Pires (sobretudo), o África publicou alguns textos que lhe deram algumas dores de cabeça.
Ainda a propósito da morte de Renato Cardoso, o "África" publicou um texto assinado por Alfredo Margarido que falava de uma cabala perfeitamente fantasiosa, mas, mesmo assim, por respeito a um colaborador de méritos firmados, sempre com opiniõs polémicas, foi publicado, na certeza de que os leitores entenderiam estas razões. Alguns entenderam, outros, alguns dos quais eram colaboradores próximos do primeiro-ministro de então, não perceberam...
Uma última questão: quando se fala em apoio ao "África", não se está a falar em compra/venda. o "África" não era vendável, o seu director nunca se vendeu, continua a não ser vendável e, na sua Redacção só havia gente honrada, uns já com grande prestígio profissional e outros que o vieram a adquirir, graças ( ainda hoje o dizem) à verdadeira escola de jornalismo que aquele jornal foi. Teremos, seguramente, oportunidade para citar os nomes. Agora estou com pressa de resolver esta questão eterna dos financiamentos. Não posso permitir que se continue a lançar o anátema sobre um dos projectos da minha vida e não posso consentir que os meus filhos, por essa razão, possam vir a ter menos orgulho nas capacidades e na obra do pai.
Repito mais uma vez - e esta - neste blog é definitiva: jamais escrevi alguma coisa porque me tivessem pago para o fazer. Nunca o conseguiria assim como nunca consegui pagar a ninguém para escrever alguma coisa que me fosse favorável ou às empresas em que trabalhei. Há gente muito importante neste país que o sabe.
Talvez Carlos Veiga também o soubesse, já que ele também sabia das dificuldades que o "África" tinha de vencer para veicular as suas notícias, os seus comentários, as suas opiniões.

2005/07/22

Financiamentos II

Manhã cedo, releio o que escrevi ontem e não resisto a acrescentar algumas coisas: aquilo que Carlos Veiga, com evidente má fé, considerou ser passível de crime de peculato atribuível a Pedro Pires é nada comparado com os honorários que ele cobrava do Estado de Cabo Verde na altura de partido único, usando como pressão a possibilidade de fazer oposição - coisa a que nunca se atreveu de forma directa, antes da introdução do sistema pluripartidário.
O medo era a sua atitude de todos os dias, medo de perder as fontes de rendimento, que lhe vinham de um Estado pobre, a lutar para sair do mais miserável subdesenvolvimento.
E já agora, o tal financiamento, mesmo com as contas erradas, foi uma gota de água no imenso oceano das despesas de um jornal que fechou sem dever nada a ninguém. Outros colaboraram muito mais que Cabo Verde.
Para acabar este capítulo: não deixa de ser notável que Pedro Pires, acossado por todos os lados, tenha afirmado no Verão de 91 que não estava arrependido do apoio que tinha dado ao "África". É que ele entendeu que sem aquele jornal o seu país não teria alcançado a notoriedade que alcançou no concerto das nações. Ele sabe, seguramente, que o que lá se escrevia era verdade, mesmo quando se entrava na crítica de posições pessoais.
É verdade: naqueles tempos de partido único o "África" atrevia-se à crítica a que a chamada oposição ao regime fugia por medo não se sabe bem de quê.
A afirmação de Pedro Pires - que muito me honra - também terá a ver com as conclusões que ele tirou sobre a relação custo/benefícios. Depois dele - já com Carlos Veiga - o país entrou no apagão global do terceiro mundo e nunca mais teve brilho.
Pelo contrário: os fundamentos de um Estado idóneo, cumpridor, respeitador das regras, foram profundamente abalados por uma onda de neo-liberalismo irresponsável, que permitiu o aparecimento de fortunas suspeitas e de um abismo ainda maior entre ricos e pobres.

Os Financiamentos

Deixo lá mais para a frente as verdadeiras razões que levaram ao encerramento do semanário"África", que, ao contrário do que a opinião pública cabo-verdiana pensou, não teve nada a ver com Cabo Verde
Tal opinião pública , foi, mais tarde, em Julho de 91, manobrada sem qualquer escrúpulo pelo gabinete do primeiro-ministro Carlos Veiga, com uma única intenção: destruir Pedro Pires, um homem que quando saiu do poder teve que ir para casa da mãe porque não tinha sequer casa própria, um homem que pertencia ao punhado de verdadeiros heróis que tinham conseguido a Independência para o país e feito dele uma terra viável para todos os cabo-verdianos.
Não quero parecer pretencioso, mas penso que havia igualmente a intenção de me "abater" como jornalista. Confesso que, de certo modo, isso foi conseguido, já que até homens como Germano de Almeida se atreveram a , de longe, lançar-me pedras, de forma mais ou menos leviana, sem cuidarem de saber o outro lado. E até o correspondente do "Público" na Praia, com a conivência óbvia da Redacção em Lisboa, se permitiu fazer notícia sem tentar, sequer, contactar-me.
Apenas um único jornalista o tentou fazer para ouvir a minha opinião sobre a matéria: foi alguém da RTP 2, já em Novembro de 1992, no dia a seguir ao da minha alta do Hospital, depois de ter feito um bypass triplo. Claro que não estava em condições de respoder a coisa nenhuma.
A questão do chamado financiamento do África que levou Pedro Pires, Júlio de Carvalho e Carlos Andrade a Tribunal foi usada como arma política para desacreditar o PAICV e alguns dos seus principais dirigentes.
O MPD, quando chegou ao poder pôde verificar que não havia provas nenhumas das calúnias que tinha lançado para a opinião pública através da cobertura que dava a panfletos anónimos em que falava de corrupção, contas no estrangeiro, etc.
Já andei muito caminho, já vi muita coisa, mas dirigentes como os que Cabo Verde teve desde 1975 a 1991 é difícil encontrar. Um único "pecado" lhes deve ser atribuído: a falta de habilidade para libertarem a informação, embora ainda o tenham tentado.
E, se não conseguiram, tal também se ficou a dever à falta de capacidade, de profissionalismo, genica e vontade da grande maioria dos profissionais da informação cabo-verdiana de então. Desse grupo, de semi-analfabetos, fazia parte Daniel Santos, que também tentou arranjar emprego no "África", em Lisboa, o homem que acabou a assinar o que, seguramente, Eugénio Inocêncio escrevia, já que, sendo conselheiro de Carlos Veiga, teve acesso aos documentos que Pedro Pires deixou no Gabinete.
E que documentos eram esses? Propostas de projecto para continuar com um jornal que fazia falta aos cinco países de Língua Oficial Portuguesa, numa conjuntura em que se lutava contra o apartheid, pela Independência da Namíbia e pela retirada das tropas cubanas.
Cabo Verde, através dos seus mais altos dirigentes políticos, percebeu a importância de tal órgão de comunicação, escrito por gente capaz, com uma estratégia inteligente, um veículo eficaz para contrapôr as razões dos africanos ao matraquear interrupto de todos os meios de comunicação social do chamado Ocidente e também do Oriente.
Ao contrário daquilo que David Hofer Almada afirmava no "Voz Di Povo", que ele como ministro da informação nunca conseguiu valorizar, nunca no jornal "África", alguém foi obrigado ou, sequer sugestionado, a escrever contra ou a favor de quem quer que fosse. E a única pessoa de Cabo Verde que encomendou um texto à redacção do "África" foi exactamente o dr. Hopfer Almada. Queria um texto sobre um livro de poemas que, na altura tinha escrito e que, em resumo, era uma saudação ao facto de ele próprio ter nascido.
Como director do jornal entreguei a matéria ao responsável pela área da cultura, que entendeu não merecer o livro qualquer referência. Foi essa a resposta que trasnmiti a Jorge Alfama, que havia servido de intermediário entre o ministro Hopfer Almada e eu própio.
Curiosameente, mais tarde, o Diário de Notícias publicou um texto da prof. Lúcia Lepeki, com grandes encómios à poesia de Almada (Hopfer).
Os textos que se seguiram à descoberta do "dossier África" são verdadeiramente assombrosos e não vale a pena sequer recordá-los, porque lhes falta, primeiro, a minha opinião e depois uma análise descomprometida e inteligente à estratégia que o tal dossier, a que foram subtraídos documentos, continha. Para compensar a falta dos tais documentos, faziam-se análises mais ou menos disparatadas aos chamados responsáveis do jornal: Rola da Silva, por exemplo, é tido como "um crítico da direita" que tem o prazer de "criticar os defeitos da esquerda". O "grande mentor espiritual do jornal, o único a quem o director (eu) pedia conselhos .E esta, oh! Rola?
Que me desculpe o Rola da Silva, meu querido amigo, e todos os outros, mas o "África", desde o princípio, mesmo como "África Jornal", com Xavier de Figueiredo como director, foi estratégia exclusivamente minha É verdade que reuni uma equipa maravilhosa, de que estou muito orgulhoso, mas, em matéria de estratégia quem mandava era eu, apesar de o Daniel Santos me considerar uma "pessoa pouco autoritária". Ainda bem - acrescento eu.
João Van-Dunem, considerado um "profundo conhecedor" dos bastidores da política angolana. "Não costuma assinar os seus artigos, nem está ao corrente de tudo o que se passa no "África" - dizia-se naquele Verão de 91, no Voz Di Povo. Lindo, João.
Carlos Veiga e os seus conselheiros tiveram nas mãos um verdadeiro manual para desenvolverem uma política de informação. E o que fizeram? deitaram-na à rua e optaram por seguir o exemplo de todos os dirigentes africanos, que pagam fortunas pela publicação de textos encumiásticos, entrevistas e coisas dessas a esmo, em revistas sem prestígio, mas que são exibidas apenas nas salas de espera dos ministros, porque nem os consultórios médicos as querem.
Provavelmente, Pedro Pires ao deixar os tais documentos no gabinete do primeiro-ministro terá pensado que o seu sucessor seria um homem capaz de perceber a importância daquele projecto. Nunca lhe perguntei se foi por isso, mas se foi, é claro que se enganou. Carlos Veiga, como político, é um rolo compressor e só abre caminho para os seus amigos e familiares.
E o mais engraçado é que, o Daniel Santos/Eugénio Inocêncio/Carlos Veiga, ao fazerem as contas do tal financiamento não perceberam que se enganaram, mas já é tarde para os ensinar a fazer contas.
Precisam, todavia, de ficar a saber que havia um compromisso entre a direcção do "África" e um núcleo duro do PAICV , que aprovava o plano, no sentido de uma parte importante daquele financiamento vir a ser reposto.
Para tal, bastava que os outro quatro países africanos de língua oficial portuguesa percebessem o alcance do projecto. A verdade é que não perceberam, mas os resultados da acção dos seus políticos ao longo dos últimos trinta anos também não são famosos. Parece que, afinal, Cabo Verde merecia o destaque o o "África" lhe dava...

2005/07/20

O Fim de um Projecto

A última edição do jornal "África" foi publicada a 31 de Maio de 1991, dia em que o governo de Cavaco Silva, como Durão Barroso como ministro dos Negócios Estrangeiros assinou um acordo em Bicesse, entre o MPLA e a UNITA - mais um acordo de" paz".
A minha posição sobre tal acontecimento foi a de o considerar mais uma palhaçada que não conduziria a nada. Já o tinha escrito há muitos anos: a guerra em Angola só terminaria com a morte de Jonas Savimbi. Sabia do que falava, conhecia profundamente a personalidade do Jonas Malheiro ( de quem tinha sido contemporâneo no LiceuDiogo Cão, em Sá da Bandeira).
Sabia que seria mais um acordo, igual ao do Alvor, e Nakuru, de Lusaka e tantos outros, inventados uns, abortados outros.
Nesse mesmo dia, fui convidado pelo Carlos Veríssimo, da RDP, para ir comentar o acordo. Eu tinha acabado de anunciar o fim do projecto pelo qual tinha lutado tantos anos, no qual acreditava. Não era, portanto, o melhor momento para prestar tal colaboração. Traduzi da pior maneira o que pensava do acordo de Bicesse. Infelizmente, nem a pouca habilidade com que disse que "Cavaco não percebia nada de África, ...pois se ele até era do Poço de Boliqueime..." serviu para salvar o acordo. O Carlos Veríssimo ficou pálido, eu aproveitei para sair do estúdio sem que ele recobrasse a fala e a guerra continuou.
Mas, o "África" tinha acabado. Estávamos em Maio de 1991, 31.
Em Setembro de 1990, 19, Renato Cardoso tinha sido morto a tiro, na Praia do Quebra-Canela.
Era um Sábado e, na quinta-feira anterior, tinha-me feito o telefonema mais extraordinário que alguma vez dele recebi.
Um parêntesis para explicar que Renato Cardoso e eu mantinhamos uma amizade muito sólida, com um acordo expresso sobre relações profissionais.
Ele desempenhou funções muito importantes enquanto eu fui delegado da ANOP na Cidade da Praia durante três anos e continuou a fazê-lo, quando eu resolvi apanhar, já em andamento, o projecto do "África Jornal", que o Xavier de Figueiredo tinha resolvido fazer avançar de uma forma extemporânea. Era um projecto sobre o qual vinhamos falando desde 1978, altura em que ele era delegado da ANOP na Guiné Bissau e eu professor cooperante no Liceu da capital.
Voltarei mais tarde a estes pormenores.
Interessa, agora, falar do telefonema de Renato Cardoso, na quinta-feira, dia 17 de Setembro, durante o qual, utilizando uma linguagem mais ou menos cifrada me pediu para ir à Cidade da Praia ( eu estava em Lisboa), porque precisava muito de falar comigo.
Estava com receio... palavra esquisita para quem o conheceu. E explicou: o Presidente da República, Aristides Pereira, tinha-o chamado para, no meio de uma conversa rendilhada, lhe dizer que o Carlos Veiga, o jurista que mais dinheiro ganhava em Cabo Verde naquela altura, o tinha informado que ele, Renato Cardoso, andava a manobrar nos bastidores para formar um partido político alternativo ao PAICV.
Estávamos, em 1990, altura em que o PAICV, sob o impulso de Renato Cardoso e de Pedro Pires, se preparava para terminar com o sistema de partido único. Ao contrário do que a maioria da opinião pública cabo-verdiana pensava na altura, o adversário da abertura era Aristides Pereira.
Renato Cardoso era uma inteligência ímpar. Em Cabo Verde, só Amílcar Cabral se lhe pode comparar. Sabia que o sistema de partido único tinha acabado. Ele tinha feito parte de uma delegação do PAICV que, na sequência das conversações para a Independência da Namíbia, retirada das tropas cubanas de Angola (pormenores de que falarei lá mais para a frente), tinha permanecido em Cuba durante mais de uma semana - Pedro Pires chefiava tal delegação - tinha tentado convencer Fidel de Castro que o sistema de partido único não funcionava em África.
Renato Cardoso, quando passava frente à multidão que se preparava para asssitir ao Festival da Baía das Gatas, em S. Vicente, donde era natural dizia : "estão aqui trinta mil pessoas, eu conheço 15 mil as outras 15 mil conhecem-me a mim". E sorria!
Se havia alguma unanimidade em Cabo Verde naquele ano da graça de 1990 - em Setembro - chamava-se Renato Cardoso. Ele poderia ter feito a transição de forma inteligente, sem ter que dividir a sociedade cabo-verdiana como Carlos Veiga fez, apoiando a campanha da insídia contra os dirigentes de então, feita através do boato, da calúnia, dos panfletos anónimos, que ele nunca condenou e de que sempre se aproveitou - ele e a Igreja, através do Bispo.
Renato Cardoso foi abatido a tiro, numa emboscada em que, de alguma forma, participou uma mulher. Foi considerado um crime passional, levado a cabo por um marginal, que nunca chegou a ser identificado, numa situação absolutamente indefensável. Perdeu, de uma vez só, a vida e o prestígio.
Mais tarde, conversei com um dos inspectores que a Polícia Judiciária Portuguesa mandou a Cabo Verde para ajudar nas investigações. Estava estupefacto com o profissionalismo de quem tinha eliminado todas as pistas...
Informações de outra natureza levam-me a concluir, de maneira insofismável, que aquele encontro foi preparado contra o Renato.
Sem Renato Silos Cardoso, o caminho ficou livre prara Carlos Veiga, que, de resto, de forma pública e notória, se organizava politicamente para aparecer como alternativa ao PAICV. Acabou por ganhar as eleições em Janeiro de 1991.
É verdade que nesse mês de Setembro fui à Cidade da Praia, mas demasiado tarde: o Renato já estava enterrado e a minha dôr foi ampliada pelo facto de ter sabido que David Hoppfer Almada - um dos seus mais pertinazes adversários - tinha feito o elogio fúnebre do meu amigo
Fui mostrar, com os olhos, o meu descontentamento. Pedro Pires estava fora, em viagem de Estado, tinhamo-nos encontrado no aeroporto de Lisboa, sem palavras.
Aos que, de alguma maneira, estão interessados nesta narrativa, devo uma explicação: Cabo Verde beneficiou claramente da minha actuação como jornalista: primeiro, como correspondente da ANOP e depois como director de um jornal especialmente direcccionado para a problemática africana. Todavia, esse benefício tinha como único fundamento a convicção profunda - que hoje mantenho - de que o único povo que tinha beneficiado com a Independência tinha sido o de Cabo Verde.
Naquele país, depois de ter deixado Angola e ter passado pela Guiné Bissau, encontrei a terra a que gostaria de chamar minha e os homens a quem gostei de considerar camaradas. Do ponto de vista profissional, todavia, sempre cumpri o meu dever. Para ilustrar este facto, mais tarde descreverei o modo como consegui entrar no domínio de alguns "top secrets" da diplomacia cabo-verdiana, facto que lhes provocou alguns dissabores.
Este parêntesis serve igualmente para se entender a pressa que tenho de explicar a relação do "África" com o poder saído das eleições de Janeiro de 1991.
Amanhã será.

2005/07/19

Aqui estou

Um amigo - o Carrera - velho companheiro de militância até às últimas consequências, chamou-me no último domingo. "Que fazes tu?" - perguntou-me ele. Surpreso - não é hábito ser invectivado daquela forma - fiquei sem resposta. "...que não te dás conta do que se passa no Mundo?"- acrescentou.

Já não ouço notícias por hábito, cortei com os jornais e só vejo televisão de vez em quando. Pensei: aconteceu alguma coisa grave em Nova Yorque: mataram três americanos...com uma bomba de carnaval activada fora de tempo...

Continuou o meu amigo:"num debate da RDP África falaram do "África". O Patraquim disse que o projecto tinha sido o mais importante de toda a comunicação social portuguesa e que tinha acabado porque os partidos portugueses nunca souberam o que se passava em África e os africanos .... não sei mais o quê. Foi um projecto heróico, consideradas as circunstâncias, etc, etc.".

Mas, o Carrera (Carrera de Porsh) acrescentou: "também tinha lá uns madiés que falaram das ilegalidades do financiamento e que o Pedro Pires, embora impoluto, incorruptível e tudo o resto, tinha cometido algumas ilegadidades.

De repente, voltou-me tudo à cabeça. Interiormente, agradeci ao Patraquim, poeta moçambicano a quem o jornal "África" sempre abriu as portas.... da tipografia. Embora superficialmente , ele percebeu o esforço heróico, super-humano que foi necessário para fazer aquele jornal semanal.

Passei o fim de semana a magicar, a ruminar. Estou farto de ouvir falar do "meu projecto", cansado de ouvir e ler aleivosias sobre o meu esforço e de mais uma dúzia de homens bons, sem ser consultado, sem ser ouvido.

Estou farto.

E, como nunca recusei uma luta, aqui estou para contar a estória do "África", de Carlos Veiga e das suas intrigas, primeiro contra Renato Cardoso, depois contra o jornal que o assustava, quando chegou ao poder e entregou o chamado "dossier África" a um jornalista de terceira categoria que trabalhava sob a orientação de um conselheiro, o Eugénio Inocêncio, hoje um rico comerciante cabo-verdiano que criou uma poderosa rede de distribuição à sombra do poder de Carlos Veiga.

Posso mesmo começar esta longa série de estórias pela do Eugénio Inocêncio, a quem, no África, sob conselho do João Van Dunenm, chefe de redacção, se deram algumas tarefas no domínio do jornalismo económico.

O Jornal não tinha dinheiro para pagar a um jornalista económico, mas, segundo o João, ele já não tinha sequer para comer. Sempre se arranjou alguma coisa e ele aproveitou uma reestruturação gráfica do jornal para aparecer com uma coluna pessoal, com fotografia e tudo.

Um dia, na busca de apoios para que o jornal funcionasse, através de um empresário português, foi-me indicada a possibilidade de mobilizar apoios de empresários espanhóis da Extremadura, que se iriam reunir-se na capital da região.

Convidei o Eugénio a estar presente para apresentar o jornal e as perspectivas económicas do espaço do qual falávamos, que era, sobretudo, o da chamada África de Língua Oficial Portuguesa.

Para estar presente exigiu que lhe pagássemos um fato novo e sapatos. A farpela custou, na altura,(85/86) 27 contos e, no caminho para Cáceres, disse ao Engº. Gonçalves Pereira que, "para entrar naquilo também queria o dele...".

Tomei conhecimento do desejo do Eugénio e resolvi dispensá-lo, com o fato, sapatos e tudo. Por mór disso fui a tribunal, pela primeira vez na vida.

Mais tarde, como embaixador de Cabo Verde em Lisboa e em licença sem vencimento pela Agência Lusa, ficou célebre pelas contas que fazia nas alfaiatarias e outras bugigangas. Parte dos dinheiros considerados gastos em extravagâncias do tipo eram, afinal, uma forma de canalizar recursos para a segunda família do então primeiro-ministro de Cabo Verde, Carlos Veiga.

Para primeiro dia já chega. Daqui para a frente, vou tentar contar tudo.
É só preciso ter paciência.

Eles têm as televisões, as rádios, os jornais e eu tenho-me a mim e aos meus amigos. Também conto com os meus inimigos, que ,afinal, me prestigiam.